Notícia | 2 de dezembro de 2013

Ó ela aqui

Carolina Abreu

Além da trouxa do Manzuá, Livina carrega consigo a força das manifestações tradicionais de sua comunidade

Se a rua fosse um palco, Livina seria o centro dos holofotes. Com a trouxa na cabeça, ela passeia radiante por entre as outras dançadeiras. “De onde é que ocê vem, meu filho?”, ela pergunta para um senhor que assiste à dança, passando a trouxa adiante. “Eu vim foi pra festa. Vi um movimento bonito perto de casa, peguei e falei assim: vou lá escutar esse barulho de perto”. “E o quê que cê veio fazer aqui?” “Uai, vim dançar a dança do Manzuá!”. A roda explode de alegria a cada vez que alguém responde a última pergunta, que dá a deixa para o coro: “Ô, cadê o Manzuá?”, “Ó ele aqui!”. Livina é quem comanda a brincadeira, com a desenvoltura de quem cresceu em meio às cantigas de roda e Folias de Reis.

A dança do Manzuá é uma das tradições da comunidade quilombola de Retiro dos Bois – povoado que pertence a Januária, mas está mais próximo (cultural e geograficamente) das comunidades do entorno de Chapada Gaúcha. “Esse Manzuá já vem de muito tempo, diz que do tempo desse povo mais velho”, conta Livina. “As mulher fazia aquela trouxona e ia pro rio lavar roupa. Aí diz que umas falava assim: ‘essa trouxa sua tá parecendo um manzuá!’. E aí ficou”. Quem puxava a dança era Dona Lorença, mãe de Livina. A filha conta que levou um tempo até que tomasse gosto pela coisa. “Mãe saía gritando: ‘Livina, Teresa, Maria, Clarice, vem, menina, vem’. Mas eu achava essa dança ridícula, feia. Não gostava de jeito nenhum. Nós só fazia cantar pra fazer gosto nos véio. Aí nós cantava”.

A trouxa foi passada de mãe para filha: Livina assumiu a dança depois que sua mãe se mudou para Goiás, com a saúde debilitada. “Eu era tímida, tímida, tímida. Mas quando ela me pediu, foi o mesmo dela ter passado a energia dela pra mim. Aí eu consegui”. Desde então, Livina é a responsável não só pelo Manzuá, mas por diversas outras danças e cantigas que estão na comunidade há gerações. “Tudo que eu sei foi passado da minha mãe; e pra minha mãe, do meu avô, que morreu com 90 anos”. Ela lembra com carinho do avô, Romualdo: “Ele era folião velho. Quando passava a Folia de Reis, nós pegava e corria. Meu avô era o alferes, aí tudo que ele queria, nós fazia. E ele ensinava: ‘tá errado o passo’, aí fazia até nós aprender”.

Hoje, Livina trabalha como diarista na sede de Chapada Gaúcha, onde mora. Mas vai ao Retiro dos Bois com frequência, para ensaiar a turma. A cada ano, ela coloca na dança novas cantigas, que vai aprendendo com os mais velhos. “Esse ano, meu tio já lembrou de um canavial, mas essa ele ainda vai me passar. Só que eles é assim: pra cantar na frente, eles não têm coragem. Aí passa tudo pra mim”. Para manter a tradição viva, ela tem um plano. “A gente vai esquecendo, né. Aí eu quero fazer um livro, com tudinho anotado”, ela planeja. Generosa, Livina acha que a dança não pode ficar só em Retiro dos Bois. “A gente tem que passar isso pra fora!”.

No sofá de casa, durante a entrevista, Livina se lembrou de diversas cantigas, ladainhas e curraleiras. Abaixo, um gostinho de algumas delas:

“Bananeira rosa,

laranjeira flor

Eu disse adeus saudade,

pra Juazeiro eu vou

Pra Juazeiro eu vou

É nesse mês que vem

Se deus me ajudar

Eu vou buscar meu bem”

“Olha, Rosamélia, quem te ama é eu

Mas cadê minha rosa, que meu bem me deu?

Bate palma e fecha a roda, que eu já vi quem eu queria

Eu enchi meus olhos d’água e o coração de alegria”

“Soldadinho de lei não carrega cinturão

Soldadinho de lei não carrega cinturão

Só carrega carabina e camisa de azulão

Pra trás eu atiro, pra diante eu já atirei

Pra trás eu atiro, pra diante eu já atirei

Roda lá com sua morena que com a minha eu já rodei”

 “Ô meu limão roxo, ô meu sabiá

O sol nasceu pra todos, eu nasci pra te amar”

Matéria publicada na 8ª edição do Jornal do Mosaico – setembro/outubro de 2013

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