Seu Bauzinho me recebeu de dentro de uma cisterna. Quase pronta, ela era a primeira das onze que serão construídas na comunidade do Traçadal, na região de Pandeiros, a 50 km de Januária. Como é o único pedreiro do lugar, enquanto não chega ajuda, Baú vai construindo as cisternas sozinho. Valdenice, sua esposa, conta que o processo de construção dessa primeira levou mais de cinco dias. Mas ele relativiza: “A minha eu termino hoje. Já comecei da minha sogra, Dona Maria, e também a da outra Maria, que mora ali do lado. Dá trabalho, mas eu sei que vale a pena”.
Nos arredores do Traçadal, ninguém o conhece como Laurimar de Jesus, como foi batizado. O apelido “Bauzinho” o acompanha desde criança. Ele conta que, com o tempo, a família foi notando que era muito inteligente e desenvolvia rapidamente habilidades de todos os tipos. Além disso, sempre teve pouca altura: na hora do almoço, seu pai se sentava num cepo de madeira e colocava o prato em um tamborete. Ele era tão pequeno, que comia junto, porém de pé. “Baú é de guardar coisa velha, né? Mas como eu era pequeno, meu primo colocou Bauzinho”, ele explica.
Com 55 anos, a cisterna é só mais um item na sua lista de produções. Além de pedreiro, marceneiro e cerqueiro, Baú é presidente da Cooperativa dos Pequenos Produtores Agroextrativistas de Pandeiros, a Coopae, que trabalha com produtos do cerrado como a polpa de pequi, o buriti e o tamarindo. Mas a fama de Seu Bauzinho vem do talento que tem com as palavras. Ele escreveu seu primeiro cordel inspirado pelos livrinhos que o primo trazia de Brasília: “Eu ficava contando as histórias dos cordéis e todo mundo achava muito engraçado. Aí um dia eu parei e falei: mas você sabe que eu podia escrever um? E fui tentando escrever, escrevi”, relembra.
A primeira história de Bauzinho foi sobre seu pai, José Gomes Negrão, que estava doente. Desde então, já publicou 86 edições de cordéis, em livrinhos que vende a R$ 2. Os temas variam bastante: Baú escreveu sobre assuntos tão diversos como a visita do Papa João Paulo II ao Brasil, a preservação do Rio Pandeiros e a morte da menina Eloá. Inspirado por uma fita da dupla Silveira e Barrinhas, Bauzinho começou a escrever também os poemas, e lembra de cabeça de todos os que já escreveu. O poema “Verdade Verdadeira”, no quadro ao lado, foi composto para o Encontro de Pescadores de Januária e, segundo Baú, “é o que está na mídia agora”. Outro sucesso de público é “O pai do menino da porteira”, que ganha um bis sempre que é recitado.
Ele explica que a diferença entre poemas e cordéis está na métrica: os dois gêneros são escritos em seis frases, mas muda a forma de fazer a rima. Baú escreve também os chamados martelos, escritos em sete frases, e as poesias simples, em quatro frases. Qualquer que seja o gênero, toda vez que Bauzinho começa a declamar, junta gente para ouvir. Nas reuniões do Projeto Pandeiros, por exemplo, organizadas pelo IEF, ele sempre fechava os trabalhos com um poema. O resultado é que suas criações já foram ouvidas de Brasília a Japonvar, passando por cidades como Bonito de Minas, Montes Claros, Arinos e Chapada Gaúcha.
Na região de Januária, Bauzinho é disputado ainda por sua vocação musical. Sua primeira sanfona foi comprada com oito anos, em troca de um frango e uma lapiseira. Além da sanfona, ele toca violão e viola, marca São Gonçalo, faz canto da igreja e escreve as folias das comunidades do entorno: Palmeirinha, Barra de Madins, Cabeceira de Madins, Campos, Quilombo e Angicos cantam versos compostos por ele. Valdenice conta que muita gente fala que Baú está desperdiçado onde mora. “Às vezes vem um pessoal de longe e diz que era para ele estar ganhando muito dinheiro”. A resposta de Bauzinho é imediata: ele não vai a lugar nenhum. “Se eu sair daqui, o lugar vai ficar sempre fraco. Se vocês acham que eu tenho valor, então eu tenho que ficar é aqui.”
Verdade Verdadeira
Laurimar de Jesus (Bauzinho)
“Todo verso que eu recito
o povo acha bonito
porque é realidade.
O povo me admira
pois não sei contar mentira
e eu só falo a verdade.
O homem que é contador
de história de pescador
é uma beleza rara.
Falo com todo o respeito:
eu já fui o melhor prefeito
da cidade de Januária.
Pra vocês eu vou falar,
quando inventei o celular,
também a televisão
Eu fui lá em Belo Horizonte
ensinei Santos Dumont
a fazer o primeiro avião.
Eu nunca fui na escola,
mas sou o rei da viola
nascido no chão mineiro.
Falo com toda a franqueza
e vocês podem ter certeza:
sou professor de Tião Carreiro.
Parece até uma praga,
ensinei Luiz Gonzaga
a ser o rei do baião.
De bater, eu não tenho dó,
peguei Maguila e Popó
e bati só com uma mão.
Eu não sou corinthiano
eu sou é atleticano,
pois no Galo eu boto fé.
Eu pesco peixe sem anzol,
eu sou o rei do futebol,
mas dei a coroa pra Pelé.
Sou um grande fazendeiro
mas não guardo meu dinheiro
nos bancos do meu estado.
Eu vivo lá no recanto
e só ligo pra Sílvio Santos
porque é meu empregado.
No recanto aonde eu moro,
tem alguém que eu adoro
lá eu vivo no sossego.
Escuto o canto do galo,
pois até Roberto Carlos
já veio me pedir emprego.
Eu me sinto um doutor
morando no interior
porque aqui é meu lugar.
Sou filho de João Mendonça,
eu tiro leite de onça
sem precisar de amarrar.
Sou professor de medicina,
mas só ensino as meninas
que não pretendem trabalhar.
Vocês podem até não crer,
mas faço aleijado correr
e o cego enxergar.
Eu faço mudo falar,
faço surdo escutar
sem cobrar uma moeda.
Eu sou do signo de escorpião,
eu salto até de um avião
sem precisar de pára-quedas.
E quando eu fico à toa
eu pego minha canoa,
faço levantar poeira.
Corro mais que Airton Senna,
declamando o meu poema
que é verdade verdadeira.
Eu puxo a barba do leão,
só pra ver a reação
que o bicho pode ter.
De ninguém eu levo mágoa,
eu escrevo até na água
e mando qualquer um ler.
Conheço toda manobra,
já dei nó em sete cobra
que estava no meu caminho.
Sou o rei da sabedoria,
mas essa capitoria
pode ver, que é de Bauzinho.
Eu sou um compositor
que o povo consagrou
nos outros eu passo a régua.
Falo com sinceridade:
se esse poema for verdade,
vai mentir na baixa da égua!”
Matéria publicada na 7ª edição do Jornal do Mosaico – maio/junho de 2013