Aquele leitor de João Guimarães Rosa – curioso pela geografia do sertão, por suas culturas, pela exuberância do cerrado e suas veredas – normalmente é instigado pela presença do Liso do Sussuarão, descrito em Grande Sertão: Veredas. Nas páginas do livro tal paisagem surge como um grande deserto no meio do sertão, “sem água”, “sem bichos” e “sem vida”, um lugar ermo e enigmático entre os estados de Minas Gerais, Bahia e Goiás.
Agora, para aqueles que vivenciam de fato a região e a bacia do Rio Carinhanha, esse espaço é desenhado de forma bem diferente: pleno de vida, berço de biodiversidade e cultura. O Carinhanha divide os estados da Bahia e Minas Gerais e é um dos mais importantes contribuintes da margem esquerda do Rio São Francisco. Nas próprias linhas do Grande Sertão de Guimarães revela-se a vitalidade de um rio “imponente”, “comprido” e “povooso”. Comprovado na geografia real pela força de suas águas e corredeiras, por seus mais de 400 quilômetros de extensão e pela população ribeirinha que habita suas margens.
Porém, outra discussão muito relevante está em curso desde 2013 sobre a Bacia do Rio Carinhanha. A proposta de construção de Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) ao longo do leito do rio, ainda em processo de licenciamento pelo IBAMA, ameaça toda a sociobiodiversidade ali presente. Em junho de 2013, movimentos sociais e organizações da sociedade civil se mobilizaram para debater a questão nas audiências públicas realizadas em Bonito de Minas e Côcos, na Bahia, em função da instalação das PCHs Gavião e Caiçara. O posicionamento contrário da população e o esforço de outras entidades (como a importante Moção do Conselho do Mosaico Sertão Veredas Peruaçu direcionada a diversos órgãos governamentais e a Nota técnica do Instituto Biotrópicos sobre os Estudos de Impacto Ambiental das PCHs) estabeleceram um marco de resistência contra a construção dos empreendimentos hidrelétricos.
Dois anos depois, o Grupo de Trabalho formado também no âmbito do Conselho do Mosaico continua na luta e na mobilização social, por meio de um projeto denominado “Travessia Carinhanha Vivo”. Segundo Damiana Campos, coordenadora executiva do Instituto Rosa e Sertão, “a ideia central é fortalecer a luta junto aos ribeirinhos e sensibilizar o Estado para a não construção das PCHs num dos mais importantes afluentes do rio São Francisco”. Além do Instituto Rosa e Sertão, representantes do IEF – Instituto Estadual de Florestas, ICMBio, Instituto Biotrópicos e membros da sociedade civil participaram da primeira fase de mapeamento do projeto, ao longo de 4 dias, logo após o encerramento do Encontro dos Povos do Grande Sertão Veredas, em Chapada Gaúcha.
Ainda segundo os membros do Grupo de Trabalho do Conselho do Mosaico, o próximo passo para a sensibilização acontecerá por mais duas etapas de mapeamento e, finalmente, por cinco dias de travessia que ligará o Parque Nacional Grande Sertão Veredas a APA do Cochá Gibão. “Cinco dias de trocas entre os participantes e ribeirinhos, cinco dias de fortaleza na e para luta a favor da vida deste nosso santuário”.
Iniciativas como a imersão do “Carinhanha Vivo” e das movimentações contra barragens em audiências, ou via moções e notas técnicas podem reverter todo o cenário dos projetos de desenvolvimento para o norte mineiro. No caso do Carinhanha, um dos pareceres técnicos oficiais do Ibama acabou por rejeitar os Estudos de Impacto Ambiental para as PHCs Gavião e Caiçara. Agora segue em processo os estudos ambientais da PCH Catumbi, sendo que várias outras partes da bacia estão sendo visadas para aproveitamento hidrelétrico. Por isso, como coloca Guilherme Braga, do Instituto Biotrópicos, “Nossas vitórias foram importantes, porém totalmente parciais. É preciso mobilizar todas as pessoas afetadas diretamente e indiretamente pela pressão socioambiental dos empreendimentos”.
O Liso fictício de Rosa está em suspensão, assim como o cotidiano real das pessoas e da vida que gravita em torno desse importante corpo hídrico do norte mineiro. No entanto, a luta continua pelo Carinhanha Vivo. Pelo Cerrado e suas culturas, de pé!