Notícia | 11 de setembro de 2015

“Desenhar o Cerrado é como rabiscar a gente por dentro” – entrevista com o cartunista Alves

Por Gabriel de Oliveira / Instituto Rosa & Sertão

Imagem: Alves

Após apresentar uma série de tirinhas do cartunista e geógrafo Evandro Alves na página do Facebook, em homenagem ao Dia do Cerrado, o Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu apresenta a seguir uma entrevista exclusiva com o autor dos quadrinhos. Nascido na cidade de Itabira, Alves é autodidata e começou a desenhar cartuns, charges, tiras e histórias em quadrinhos no ano de 1993 e não parou mais. Publicou seus trabalhos nos jornais “O Estado de Minas (MG)”, “O Tempo (MG)”, “Diário da Tarde (MG)”, “Super Notícias (MG)” e “Pasquim 21 (RJ)”, além de publicações na França e Sérvia – nas revistas “Courrier International” e “Stripolis” respectivamente.

Já foi roteirista freelancer dos estúdios Maurício de Sousa Produções e premiado nos salões de humor mais influentes do Brasil, mas agora seus traços procuram cada vez mais a “tortuosidade” do Cerrado, “a mais pura e natural expressão do surrealismo na natureza”! O contato profundo com o bioma ainda na infância e o desejo de tirar o Cerrado de uma condição de “invisibilidade”, levou Alves a começar esse incrível trabalho.

Se, quando “moleque”, sua influência eram os super-heróis e, na adolescência, o humor gráfico de artistas como Henfil, Laerte e Son Salvador, agora o cartunista encontra nas formas e temáticas do Cerrado o caminho para enveredar na poesia em quadrinhos – “para ver no que dá”, como afirma despretensiosamente. Neste 11 de Setembro, Dia do Cerrado, fica o convite para o leitor adentrar nas formações campestres e florestais do bioma, nas suas mais belas cores e cheiros, seus sons e silêncios. E, assim como Alves, refletir e dar visibilidade para o drama das violências socioambientais que vem sendo cometidas em pleno coração do território brasileiro.

Como iniciou sua história com os Quadrinhos? E quando e como veio o interesse em trabalhar com as tiras sobre o Cerrado? Uma via bem original, me parece. 

Comecei a fazer histórias em quadrinhos ainda bem moleque. Primeiramente influenciado pelos super-heróis. Gostava de desenhar histórias do Capitão América, Homem de Ferro, Thor e principalmente o Hulk. Ainda menino resolvi criar os meus próprios super-heróis. Isso, de alguma maneira, já indicava que eu iria trilhar o caminho da criação – escrever e desenhar minhas próprias histórias. Na adolescência tive acesso ao trabalho de artistas como Henfil, Angeli, Glauco, Laerte, Adão, Aragonés, Matt Groeening, Amorim, Son Salvador e outros cartunistas e acabei direcionando meu trabalho para o humor gráfico. Trabalho com quadrinhos humorísticos desde então, mas ultimamente tenho enveredado pelo caminho da poesia em quadrinhos para ver no que dá.

O interesse em trabalhar com as tiras sobre o cerrado deu-se primeiramente pelo mesmo motivo que levou os povos primitivos do bioma a rabiscar as paredes das cavernas e lapas cerrado afora. Encantamento e vontade de retratar/celebrar o ambiente em que habitava e habito até hoje. Então, nos meus trabalhos sempre dava um jeito de encaixar uma arvorezinha torta aqui e ali. Outro motivo forte, que me levou a querer trabalhar com quadrinhos acerca do cerrado, foi a invisibilidade ambiental do bioma. O Cerrado é frequentemente tratado como um “bioma de segunda categoria” pobre, vazio e rústico que deve desaparecer e dar lugar a “grande lavoura” ou a cidade. Não se dá ou se esconde a sua verdadeira importância. A visão mais rasteira e comum em relação ao bioma deixa de lado todas as suas riquezas naturais e humanas e se alicerça somente em um viés utilitário. Diante deste quadro, percebi que poderia e deveria retratar a complexa e preocupante situação do bioma – suas plantas, seus bichos e seus povos – utilizando a linguagem dos quadrinhos.

E qual a força, a magia de retratar o Cerrado?

Desenhar/retratar o Cerrado é como rabiscar a gente por dentro. Colorir o escuro de dentro de nós com cores e cheiros de mato. As paisagens abertas, o extenso horizonte (que remete ao infinito), a confusão de plantas tortas, a água pingando das nascentes e veredas, os silêncios (ou a gritaria das cigarras), passarinho que passa voando, tudo isso carrega uma magia muito palpável. A gente pega com os olhos e lambe com as mãos. Aí vira desenho, estória.

Na visão do artista e geógrafo Alves, quais são as belezas desse bioma, muitas vezes depreciadas por alguns setores da sociedade? Um bioma tão emblemático, precioso…

O Cerrado é uma beleza que se emenda (embora hoje esteja mais “remendado” do que emendado por culpa de um modelo de ocupação atual) e tudo nele cabe em beleza. Veredas, matas de galeria, campos sujos, campos rupestres, chapadas; belezas deliciosamente misturadas. Mas vou destacar aqui somente uma beleza do bioma depreciada por setores da sociedade. As árvores tortas… A tortuosidade e aspecto dos troncos de várias espécies de árvores do Cerrado são, para mim, a mais pura e natural expressão do surrealismo na natureza. Por muito tempo as formações vegetais mais típicas do bioma (essas arvorezinhas enfezadas) foram uma espécie de salvo-conduto para que o “progresso” avançasse sobre o bioma. Devia-se a todo custo substituir essa caótica e rústica vegetação de folhas duras por pastos uniformes e pela retidão das florestas de eucalipto.

Sei que você teve sua infância com os pés fincados nos cerrados de Lagoa Santa. Pelo visto, as raízes também! Qual a influência desse período no seu trabalho?

Quando era criança, transformei o cerrado das redondezas onde morava em uma extensão do quintal lá de casa. Ia para o mato conhecer – catar cajuzinho, sangue de cristo, murici… Tentar ver onde se escondia, morava o calango-verde (com seu jeito dele de andar muito engraçado, que não dava para saber se era preguiça ou indecisão). Correr em trilhas com o capim cortando as canelas, pular em grotas misteriosas. Esse quintal muito grande cheio de “larguezas” me encheu de saberes e sentimentos. E isso hora ou outra sempre dá de desembocar em algo que desenho ou escrevo. Vai junto, colado no meu DNA artístico.

O Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu é um ambiente singular no contexto do Cerrado mineiro, do ponto de vista ambiental e cultural. Você possui interesse em conectar o cerrado afetivo de Lagoa Santa com o do norte mineiro?

A primeira vez que ouvi falar de mosaicos (mais especificamente do Mosaico do Espinhaço) e sua importância foi durante o período em que cursava o mestrado lá no IGC [Instituto de Geociências – UFMG]. Agora, recentemente, tenho acompanhado as notícias do Mosaico Sertão Veredas – Peruaçu através da página do facebook. Ainda não pisei o chão de lá, mas posso garantir que a conexão do cerrado afetivo de Lagoa Santa com o do norte mineiro já existe dentro de mim há um bom tempo. Culpa de João Guimarães Rosa. Falta agora esticar meus passos até lá… Não demora.

Pois é, além de ter um conhecimento sobre o Peter Lund, um dos pesquisadores pioneiros do Cerrado, você também faz uma homenagem ao Guimarães Rosa por meio de um dos seus personagens. Como veio essa inspiração e qual a importância da obra deste autor para o Cerrado?

Sim. O personagem principal das tirinhas Manuelzinho-da-croa é uma homenagem ao gigante Guimarães Rosa e foi retratado pelo autor em “Grande Sertão: Veredas”. Trata-se de uma ave observada e muito querida por Diadorim no romance de Rosa. Fiquei muito curioso em saber como seria essa ave capaz de enternecer o coração de um jagunço e comecei a pesquisar, procurar imagens dela. Quando enfim achei vi que ela poderia ser, além de homenagem, um personagem perfeito para as tiras que pretendia fazer, devido à sua graça, forma física e jeitinho assustadiço. Alterei alguns aspectos do formato e cor para dar mais dinâmica ao personagem e ele ficou do jeito que vemos na tirinha.

Para mim a importância da obra de Guimarães Rosa, para além da literatura, está calcada no registro de um sertão/cerrado que se apaga (ou melhor, é apagado) e transforma rapidamente. Os tipos humanos e seus saberes, os bichos, as plantas, o relevo, não são só eternizados de forma poética e lírica, mas também guardam consigo as memórias e olhares de um sertão que se acaba… Cercado de soja e cidades.

Além disso, você trabalhou com jovens nas escolas durante a dissertação de Mestrado. Comente um pouco sobre a importância da educação para a conservação e para a reflexão sobre o bioma.

Durante anos foi apresentada nas escolas, na mídia e até mesmo na academia uma visão depreciativa em relação ao bioma. Esse (des)conhecimento faz com que a educação seja de extrema importância para que visões distorcidas acerca do Cerrado sejam refutadas. Ao trabalhar com jovens tentei captar um pouco de seus olhares sobre as questões socioambientais do bioma, assim como apresentar suas facetas pouco conhecidas – utilizando a linguagem dos quadrinhos. Os resultados obtidos apontaram claramente para importância da educação na reflexão acerca da situação do bioma, assim como mostraram também que as histórias em quadrinhos colaboraram para potencializar esse processo reflexivo.

Sobre o atual cenário do Cerrado, você concorda com o Altair Sales Barbosa (grande pesquisador sobre o tema) que o bioma está em vias de extinção?

O cenário é tão pavoroso, na sua visão?

O Cerrado está criticamente ameaçado… Perdeu mais de metade de sua área original em pouco mais de cinquenta anos, sofre com a pressão intensa do agronegócio e com o crescimento das cidades. Associado a isso, políticas governamentais de proteção ao bioma são muito tímidas e não são capazes de frear a sua derrocada, antes a estimulam. Não há como negar a afirmação do Altair… É uma situação dramática, o Cerrado está muito, mas muito perto da extinção mesmo… Mas gosto de pensar que enquanto há vida, há luta – e temos que nos organizar e lutar para salvar o que resta do bioma e de suas populações tradicionais. Não é algo fácil, nem há garantia de sucesso… Lutamos contra todo um poderoso e estruturado modelo político/econômico que já decretou pena de morte ao Cerrado. Mas essa luta – em várias frentes – contra o atual modelo de ocupação do bioma é a única opção que temos…

Qual o destino do Cerrado para os próximos anos?

Se o ritmo da destruição continuar do jeito que está sem que nada seja feito, o pouco que resta do Cerrado vai virar soja ou peça de museu…

E por onde caminhar? Quais alternativas de desenvolvimento podem ser seguidas? Você conhece boas iniciativas brotando?

Todos os caminhos por onde passam a preservação e manutenção do bioma hoje, estão relacionados à mudança do modelo de ocupação predominante atualmente. Neste caso, o efetivo reconhecimento das populações tradicionais do Cerrado, garantindo seu direito à terra, assim como o aporte de recursos que possam viabilizar e fomentar estratégias de desenvolvimento sustentável (agroecologia, por exemplo) é um caminho possível de ser trilhado.

Qual o papel da educação nesse sentido?

Neste caso a educação atua como elemento de informação, organização e coesão da pauta comum aos vários atores interessados na preservação do Cerrado espalhados pelo Brasil – não somente na área de ocorrência do bioma, mas da sociedade civil como um todo. Além disso, ela também é de extrema importância para denúncia da atual situação do Cerrado, servindo de contraponto ao pensamento defendido por aqueles que defendem a ocupação do bioma visando somente o lucro.

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